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21 de julho de 2022
Pessoas transformaram a mulher da casa abandonada em protagonista e a mansão em que vive em um ponto turístico. O Brasil Colônia segue vivíssimo
Entenda a polêmica
A perigosa espetacularização do caso Margarida Bonetti
Nesta quarta-feira (20), muita coisa aconteceu envolvendo o podcast A Mulher da Casa Abandonada, da Folha de S. Paulo, uma reportagem investigativa comandada por Chico Felitti.
Pela manhã, o último episódio da série foi ao ar e Margarida Bonetti concedeu sua primeira entrevista desde que foi acusada de manter sua empregada doméstica em condições análogas à escravidão por duas décadas nos EUA.
A mulher deu várias declarações que escancaram o universo distópico em que vive a elite brasileira – e não só ela.
Entre contradições e falas em tons de ameaça contra o jornalista, Margarida, uma mulher branca que pertence a uma família nobre de São Paulo, a todo momento se coloca como vítima e tenta pôr a empregada, uma mulher negra, no papel de vilã.
Numa hora, a moradora do Higienópolis diz não saber que seu nome estava/está envolvido em uma investigação conduzida pelo FBI. Em outra, garante que todas as acusações contra ela não passam de um complô entre autoridades e advogados norte-americanos.
Em determinado momento, a entrevistada tenta conduzir a entrevista e questiona Chico Felliti de maneira irônica: “Você não vê filme, não?”; dando a entender que essa história toda envolvendo seu nome é um caso de cinema, colocando-se como protagonista de uma trama que, na realidade, é sobre escravidão em pleno século XXI – mas que, infelizmente, a transformou numa espécie de anti-heroína.
À tarde, um show de horrores ocorreu. A Polícia Civil realizou uma operação na Casa Abandonada após receber denúncias de um possível crime de abandono de incapaz. O inquérito está sendo apurado e a família Bonetti pode ser responsabilizada pela situação atual em que Margarida vive.
Ao mesmo tempo, a ativista Luisa Mell começou a transmitir ao vivo toda a movimentação, dizendo que havia ido até o local após uma denúncia de gato. Só que o gato, na realidade, se referia a um possível roubo de energia, ou seja, gato de fio, não de animal.
Ainda assim, a live continuou a ser transmitida, com Mell dizendo em alguns momentos que estava mais tranquila ao saber que não havia nenhum problema com bicho dessa vez – em meio a uma tremenda confusão envolvendo uma mulher que é investigada pelo FBI por crimes análogos por escravidão.
Eis que, no meio desse auê todo, Margarida Bonetti deu as caras e fez uma aparição para todos verem sem estar com o rosto coberto de pomada. Ela, transtornada, começou a gritar com os policiais que estavam no local, atitude que fez muita gente questionar o seguinte: se a operação estivesse sendo realizada em uma comunidade e a mulher gritando fosse negra, teria tido o mesmo tratamento que Bonetti teve?
Se o podcast A Mulher da Casa Abandonada “é o retrato do Brasil”, como diz o próprio criador, Chico Felliti, o circo do absurdo que ocorreu na tarde desta quarta, sendo transmitido em tempo real nas redes sociais e no programa Brasil Urgente, da TV Record, prova que a espetacularização da violência compactua com a sociedade racista em que vivemos. “É muito mais interessante para a branquitude brasileira fetichizar através de um discurso que exibe minuciosamente práticas do fazer colonial em nome do entretenimento do que criar tensões que possibilitem a responsabilização dentro da sua própria categoria racial”, explicam Bárbara Borges e Francinai Gomes, idealizadores do projeto Pra Preto Ler.
Nada do que ocorreu na tarde desta quarta-feira (20) é jornalismo e nada foi em prol de pessoas ou animais. Tudo não passou de um espetáculo midiático que contribuiu, em muitos pontos, para uma revitimização de Margarida Bonetti, e isso é muitíssimo perigoso.
Last modified: 3 de março de 2023